mãos dadas

Da Roda dos Expostos ao ECA: como o Brasil ainda lida com a ideia de “pegar para criar”

A legislação atual garante a proteção das infâncias, mas no passado a adoção já foi um meio de destinar crianças ao trabalho doméstico para famílias abastadas

Por Beatriz de Oliveira

17|11|2025

Alterado em 17|11|2025

A adoção começou a ser regulada no Brasil em 1916. Antes disso, era comum a prática de “pegar crianças para criar”, inclusive com o intuito de destiná-las ao trabalho doméstico. Apesar de a legislação atual garantir a proteção das infâncias, ainda existem casos de pessoas que se sentem no direito de “pegar” uma criança para criar, sem amparo legal.

No início de outubro, repercutiu uma entrevista concedida por Poliana Rocha, celebridade e esposa do cantor sertanejo Leonardo, em que falou com naturalidade sobre ter “adotado” um adolescente de 15 anos para brincar com o seu filho Zé Felipe, de 10 anos na época. No programa televisivo, ela relata que, depois que o adolescente ficou “preguiçoso” e não queria mais brincar com Zé Felipe, decidiu “devolvê-lo” para a família.

Em outro caso, a senadora Damares Alves, apresentou Kajutiti Lulu Kamayurá, indígena da aldeia Kamayurá, no Xingu, como sua filha adotiva. No entanto, em 2019, uma reportagem da revista Época revelou que a menina foi retirada irregularmente da aldeia aos seis anos, sob o pretexto de fazer um tratamento de saúde.

Também em 2019, causou revolta um desfile de adolescentes aptos para adoção em Cuiabá (MT). A ação, chamada de “Adoção na Passarela”, aconteceu em um shopping e tinha o objetivo de “facilitar” a adoção do grupo. Em nota, a Defensoria declarou que a exposição dos menores pode levar à objetificação e “passar uma ideia de mercantilização, fato que não coaduna com os princípios norteadores da Constituição da República Federativa do Brasil (CF/88) e do Estatuto da Criança e do Adolescente (ECA).”

Se mesmo com legislações de proteção à criança na adoção acontecem casos assim, como era a realidade das pessoas abandonadas na infância antes disso?

Rodas dos Expostos

As chamadas Rodas dos Expostos vigoraram por mais de 200 anos no país. Tratava-se de uma caixa dupla de formato cilíndrico colocada no muro das instituições caridosas, destinada a quem desejava abandonar uma criança de forma anônima. No lado de fora do muro, a pessoa depositava a criança na abertura e girava o dispositivo para que ela fosse colocada no lado interno da instituição.

roda dos expostos

Roda dos Expostos

©reprodução

A primeira Roda dos Expostos no Brasil foi instalada no ano de 1726 em Salvador (BA). No total, o país contou com 13 rodas que perduraram até a década de 1950. Os dispositivos eram colocados nas Santas Casas, que cuidavam das crianças até que completassem sete anos de idade. Depois disso, eram tratadas como adultas e deveriam trabalhar.

Mulheres pobres, solteiras ou viúvas eram as que mais deixavam seus filhos nas rodas. Também era comum mulheres escravizadas deixarem seus bebês recém-nascidos nesses locais na esperança de livrá-los da escravidão.

“Apesar de terem existido essas instituições que cuidavam dos pequenos abandonados, o formato da criação de filhos alheios foi um costume extremamente abrangente e universal, estando presente na história brasileira desde a Colônia e permeando os dias atuais”, explica a advogada Stella Scantamburlo de Mergár no artigo “A infância e a adoção no Brasil: Um trajeto histórico dos ‘filhos de criação’ do século XVI até a promulgação do ECA”.

Antes do fechamento das rodas, em 1916, foi promulgado o primeiro Código Civil brasileiro, que estabelecia regras rígidas sobre a adoção, como idade mínima de 50 anos para adotar. Já em 1957, com a mudança da legislação, a idade mínima passou para 30 anos. Na época, o ato ainda era visto como assistencial, por isso os filhos adotivos não tinham direito a herança, por exemplo.

Nesse período, existia o Serviço de Colocação Familiar, que oferecia acolhimento temporário para crianças e adolescentes. Numa das modalidades, a criança era entregue aos cuidados de uma família sem nenhum pagamento. Mas, em outra modalidade havia uma remuneração.

Nos casos em que a abandonada era uma menina, ela era destinada à casa de famílias para realizar serviços domésticos mediante pagamento, “sendo que metade do pagamento era feito diretamente à menor e outra metade depositado numa conta bancária na Caixa Econômica Federal em nome da jovem”, escreve Stella Mergár.

Com a instauração da ditadura militar em 1964, é criada a Fundação Nacional do Bem-Estar do Menor, conhecida como FUNABEM. Esses espaços recebiam crianças e adolescentes “infratores” e abandonados.

Já em 1979, há um novo marco na história da adoção: a promulgação do Estatuto do Menor, que traz avanços no tema em meio a um movimento de se entender a adoção como a busca por um filho de fato, não por um alguém para realizar serviços domésticos ou forma de caridade.

Estatuto da Criança e do Adolescente

Em 1988, com a promulgação da Constituição Federal, passamos a reconhecer que é dever da família, da sociedade e do Estado o cuidado às crianças. O texto define também que os filhos adotivos têm os mesmos “direitos e qualificações, proibidas quaisquer designações discriminatórias relativas à filiação”.

Dois anos depois, em 1990, entra em vigor o Estatuto da Criança e do Adolescente que estabelece que “a adoção é uma forma de garantir o direito de uma criança crescer em família” e que é um ato irrevogável definido por sentença judicial.

Para se adotar é necessário ir até uma Vara de Infância e Juventude e realizar um pré-cadastro com a qualificação completa, dados familiares e perfil da criança ou do adolescente desejado. Deve-se respeitar a diferença de 16 anos entre quem deseja adotar e a criança a ser acolhida.

Segundo dados do Sistema Nacional de Adoção e Acolhimento, quase 3.800 crianças e adolescentes estão esperando por adoção e existem mais de 46 mil pretendentes cadastrados em todo o país para adotar.

Com esses marcos, “parte-se, agora, de uma nova perspectiva sobre a infância, deixando as concepções de menor desvalido, abandonado, delinquente, carente e em situação irregular e adotando um modelo de proteção integral da criança e do adolescente”, pontua Stella Mergár em seu artigo.